Por Pedro Sobral
Para os europeus, o rato é um animal infame que nos traz memórias da peste bubónica (a chamada “Peste Negra”), que teve o seu auge em meados do século XIV e vitimou dezenas de milh?es de pessoas por toda a Eurásia. Na China, o pequeno roedor é reverenciado pelo seu raciocínio rápido, pela sua capacidade de acumular e manter objetos de valor, assim como um símbolo de boa sorte e riqueza.
Pois quis o Porco, signo regente do ano que acabava de findar, que o Ano do Rato ficasse associado, também na China, à doen?a, na forma da maior crise epidémica do país desde a SARS em 2002/2003.
Emanando da cidade de Wuhan, o alto grau de contágio do chamado “coronavírus” permitiu a sua propaga??o, a uma velocidade estonteante, por grande parte do território chinês. Observando, através da televis?o e das redes sociais, o agravamento da situa??o e as dimens?es que esta estava a tomar, os europeus gradualmente tomaram consciência de que seria apenas uma quest?o de tempo até que o coronavírus come?asse a aparecer pela Europa, em virtude também do elevadíssimo número de cidad?os chineses que por cá viajam, estudam e trabalham.
Trabalhando como professor de Português na China (em Zhejiang, uma das províncias agora mais afetadas pelo coronavírus), regressei a Portugal no início de janeiro, por ocasi?o das férias de inverno. Na altura, mesmo na China, a dimens?o da amea?a n?o era ainda conhecida, apesar de os primeiros casos de coronavírus em Wuhan terem verificado ainda em finais de dezembro do ano passado.
A situa??o geográfica periférica de Portugal, t?o badalada entre nós como uma das causas endémicas do atraso nacional, servia de algum conforto ao português: a China fica longe e “pode ser que n?o chegue cá”. As medidas, tardias mas abrangentes e decisivas, levadas a cabo pelo governo chinês para conter o alastramento da epidemia, nomeadamente a quarentena imposta a Wuhan (“uma cidade com mais gente que Portugal inteiro!”, dizia-se com pasmo), pareceram tranquilizar também os portugueses. Causou também sensa??o, sendo imagem de encerramento de muitos telejornais, a “constru??o dos hospitais em 10 dias”, coisa que, diziam os portugueses com espanto e admira??o mal escondidos, “só mesmo na China”.
Mau grado o aparecimento de diversos casos de coronavírus (inclusive na vizinha Espanha), Portugal tem sido poupado, pelo menos até ao momento da escrita deste artigo. Os dois casos de suspeita de contágio divulgados pelos média revelaram-se negativos e as imprescindíveis máscaras protetoras demoraram a esgotar nas farmácias e drogarias. Entre as autoridades de saúde portuguesas, parece imperar um clima de confian?a no governo chinês e na sua capacidade de fazer frente a um evento desta magnitude.
Sem descurar algumas medidas de preven??o e de prepara??o para eventuais casos, acredita-se em Portugal que a China é mais que capaz de fazer a triagem dos cidad?os que abandonam o país, de modo a minimizar a propaga??o do coronavírus. Parece também ter existido um certo esfor?o, por parte dos órg?os de comunica??o social, para desconstruir boatos e demonstrar que a situa??o em Wuhan n?o é t?o má como fazem parecer algumas notícias sensacionalistas e filmagens potencialmente fabricadas.
O consenso entre os portugueses parece ser o de que a China tem a situa??o sob controlo e, mais do que qualquer outro país, possui os meios e a perseveran?a para ultrapassar este momento negro.
Provavelmente a consequência mais lamentável e perigosa para tempos vindouros é a onda de racismo e xenofobia que o alastramento do vírus pela Europa e pelos Estados Unidos tem trazido à superfície. Rea??es e comentários potencialmente racistas dirigidos a chineses ou asiáticos em geral, que pelas suas características físicas s?o associados ao coronavírus, têm surgido um pouco por toda a Europa e deram inclusive origem (mais uma vez em Fran?a, que conta, até à data, com 6 casos confirmados) ao movimento #JeNeSuisPasUnVirus (eu n?o sou um vírus).
Portugal n?o tem estado imune a polémicas relacionadas com o coronavírus. No passado dia 4 de fevereiro, numa rubrica do programa “Café da Manh?” da esta??o de rádio RFM, uma personagem interpretada pelo humorista Luís Franco-Bastos teceu alguns comentários satíricos relacionados com os chineses e o coronavírus e que feriram as suscetibilidades da comunidade chinesa em Portugal, que exigiu um pedido de desculpas. A mesma comunidade chinesa teme também possíveis prejuízos nos seus negócios em Portugal fruto de receios de contágio, chamando a aten??o para casos de discrimina??o nas escolas, na linha dos que sucederam por conta da SARS em 2003.
Por fim, n?o poderia deixar de louvar o papel da Embaixada de Portugal na China e do governo Chinês no resgate e regresso a Portugal dos portugueses residentes em Wuhan, uma opera??o que se traduziu num sucesso e demonstrou uma notável sinergia e coordena??o entre os governos das duas partes.
Portugal e, principalmente, os portugueses que, como eu próprio, possuem liga??es profissionais e pessoais com a China acompanham os desenvolvimentos com um misto de angústia pelos crescentes custos humanos da epidemia, e de confian?a em que a China será capaz de prevalecer perante esta e futuras prova??es.or
(O autor é um professor da língua portuguesa da Universidade de Estudos Estrangeiros Yuexiu de Zhejiang)