Pássaros chilreiam desenfreadamente em gaiolas suspensas sobre a rua; vendedores e vendedeiras gritam em plenos pulm?es, alguns dos quais com recurso a megafones; propaga-se o aroma penetrante da carne ovina, sobrepondo-se a tudo o resto— a língua chinesa tem inclusive uma palavra só para se referir ao odor característico, representada pelo carater 膻 (shan) —; chineses e estrangeiros de várias etnias, credos e proveniências contorcem-se para chegar a uma banca ou restaurante; motos tentam irromper por entre a azáfama, com recurso a buzinas ensurdecedoras; grupos de amigos chamam incessantemente uns pelos outros, “é aquele! é aquele restaurante!”, enquanto consultam nos smartphones as críticas deixadas na internet sobre os melhores sabores e promo??es; bocas de gás cospem fogo a todo o vapor sobre caldeir?es de toda a espécie e feitio; Códigos QR bamboleiam ao sabor de encontr?es e do vento, pendurados em cima dos sítios mais inusitados e vistosos para mostrar à clientela que se aceitam pagamentos de Alipay e Weixin (os aplicativos de pagamentos móveis mais em voga atualmente no país); uma amazónia de neons cintilantes e cartazes berrantes bradam por aten??o à boa maneira asiática; copos de vidro de iogurte caseiro, espetadas de lula assada, batatas fritas e n?o sei mais o quê rodopiam à minha volta ao som de exclama??es de deleite: “hao chi!” (delicioso); múltiplas lojas negoceiam saladas de fruta em bacias, em modo self-service, como se de refei??es completas se tratassem; TAU! TAU! TAU! Tran?as de massa s?o violentamente arremessadas sobre superfícies de madeira antes de serem esfiadas por habilidosos chefs locais, que apregoam a famosa “biangbiang mian” — sendo que ‘biang’ é representado pelo carater chinês mais complexo de todos, cujo único propósito é meramente uma representa??o fonética do ruído exasperante da massa a colidir com a tábua de culinária —; Cachos de malaguetas encarnadas oscilam em fachadas de lojas cuja especialidade é a venda deste condimento incendiário que infunde a alma dos pratos locais com o ardor característico; ouve-se o pulular incessante das aparatosas máquinas de sumo de mirtilo, outra especialidade local; toda esta cacofonia é complementada com comerciantes mais criativos que recorrem a truques e improvisos que possibilitem atrair mais freguesia ao seu estaminé.
Acreditem ou n?o, dei por mim a ouvir “Beat It”, de Michael Jackson, em plenos decibéis a retumbar de uma loja de espetadas de carne de ovelha, outra especialidade (esperem, onde é que eu já disse isto?), num bairro mu?ulmano no centro da China.
Foi neste quarteir?o onde eu, bem acompanhado, acabei por me perder por mais tempo que inicialmente previsto. Após aconselhamento da copiloto (ou serei eu o copiloto?), n?o caí na tenta??o obscena do éden gastronómico que me rodeava, seguindo em busca da terra prometida até às profundezas do bairro onde, reza a lenda, os locais se banqueteiam das mesmas iguarias sem que a carteira seja vítima de um atentado (embora o custo de vida de Xi’an seja, em certa medida, inferior ao de Beijing). Assim foi. Numa viela rec?ndita, onde a presen?a turística era agora ténue, idosos sentam-se à volta de mesas improvisadas na rua e vizinhos cumprimentam-se num ambiente manifestamente mais aprazível para os tímpanos. Ali jaz um modesto restaurante especializado num dos pratos mais badalados da cidade: “yangrou paomo”. A refei??o consiste numa malga com peda?os de carne de ovelha, massa de arroz, gengibre, coentros e um (ou dois, como os locais preferem) p?o(?es) aos pedacinhos (tarefa ritualística, feita manualmente, para que o comensal escolha a dimens?o dos fragmentos). Todos eles s?o subsequentemente afogados numa calda tradicional (bem generosa no sal). O resultado? Maravilhoso. Eu, que já tinha experimentado noutros pontos da China, fiquei resignado. O de Xi’an é efetivamente superior.
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