José Medeiros da Silva
As desastrosas declara??es do deputado federal Eduardo Bolsonaro em rela??o à China est?o causando apreens?o, tanto no Brasil quanto aqui na terra de Confúcio. Porém, apesar da sua proximidade com o Planalto e de sua clara influência na política externa do governo liderado pelo seu pai, sua mensagem acusando a China como responsável pela pandemia do coronavírus n?o deve afetar o rumo das rela??es entre os dois países. Evidentemente que, para o deputado paulista, a conta deve ficar bem salgada, como se pode perceber pelas duras respostas do embaixador da China no Brasil, Yang Wanming.
Na verdade, apesar de indesejável diante desse momento de crise, esse episódio é politicamente revelador e até mesmo instrutivo. E podemos aproveitá-lo para conhecer camadas mais profundas de um duro jogo geopolítico que está apenas nos minutos iniciais. Mas antes de detalharmos nosso ponto de vista, vamos ao resumo dessa tensa ópera.
Primeiro, vejamos a mensagem de Eduardo: “Quem assistiu Chernobyl vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavi?rus e a ditadura soviética pela chinesa. Mais uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa e? da China e liberdade seria a solu??o”.
Ao afirmar que a falta de liberdade no país é a principal raz?o para atual crise mundial desencadeada pelo coronavírus, o deputado paulista, conscientemente ou n?o, interferiu diretamente na política interna chinesa. Ou seja, na vis?o da China, ele feriu um dos princípios basilares de sua política externa, o princípio da n?o interven??o. Daí a dura rea??o, e até mesmo amea?as, tanto nas mensagens disparadas pelo embaixador Yang Wanming quanto pelo Twitter da embaixada da China no Brasil.
“Lamentavelmente, você é uma pessoa sem vis?o internacional nem senso comum, sem conhecer a China nem o mundo. Aconselhamos que n?o corra para ser o porta-voz dos EUA no Brasil, sob pena de trope?ar feio”. “As suas palavras s?o extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. N?o deixam de ser uma imita??o dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami contraiu, infelizmente, o vírus mental, que está infectando a amizade entre os nossos povos”.
Para quem acompanha as rela??es internacionais da China, o tom dessa mensagem foge inclusive a um padr?o diplomático normalmente adotado. Isso mostra a gravidade da situa??o. Por outro lado, a mensagem revela a consciência do embaixador sobre o jogo político internacional e o papel ativo de Eduardo nas tramas desse jogo.
Na verdade, nessas declara??es de Eduardo n?o há nenhuma novidade. é importante ter claro que ele vem atuando e se preparando para ser n?o apenas o porta-voz, mas o principal representante no Brasil e na América Latina de um grande movimento de for?as de direita muito próximo da Casa Branca.
Costurado a partir dos Estados Unidos, esse movimento tem entre os seus principais estrategistas Steven Bannon, que tem colocado a luta contra a China no centro de suas prioridades. Basta ouvir algumas entrevistas recentes de Bannon para se perceber que a narrativa de Eduardo é praticamente a mesma. A única diferen?a é que no Twitter do deputado o texto veio em português.
Há de se reconhecer que o deputado Eduardo trabalha com um horizonte de tempo político n?o imediato e aproveita bem desse seu transito tanto no Planalto quanto na Casa Branca para fortalecer esses seus objetivos mais duradouros. Nessa perspectiva, suas palavras podem ter sido bem pensadas pois, além de se fortalecer diante de sua base eleitoral no Brasil, ele se fortalece também junto ao núcleo internacional desse movimento de direita anti-China.
O problema é que o deputado n?o é apenas um representante desse movimento, mas também o presidente da Comiss?o de Rela??es Exteriores e de Defesa Nacional. E no exercício desse papel institucional precisa ponderar mais suas palavras e conduzir com mais cuidado esses seus projetos pessoais.
N?o tenho dúvidas de que essas suas declara??es ser?o duramente repudiadas também dentro do próprio governo, principalmente entre os representantes do setor econ?mico (agronegócios) e do segmento militar. Como se sabe, o governo de Bolsonaro comporta uma rede de interesses muito mais profunda e duradoura, onde a China tem um papel decisivo, inclusive dentro de qualquer cálculo de governabilidade.
N?o casual, desde a sua elei??o, grande tem sido os esfor?os do presidente Bolsonaro para evitar um tensionamento com a China. E, diga-se de passagem, tem até agora conseguido. As a??es do vice-presidente Hamilton Mour?o e de ministérios como o da Agricultura, além do próprio presidente, têm sido todas nessa mesma dire??o.
Mesmo recentemente, já em rela??o a essa crise do coronavírus, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, publicou um vídeo combatendo o preconceito, destacando a importancia da solidariedade e elogiando os esfor?os do povo chinês na sua grande luta contra essa pandemia. Aliás, o vídeo ganhou por aqui legenda em chinês e teve uma repercuss?o muito positiva nas redes sociais do país.
Penso que apesar dessas declara??es de Eduardo e das respostas firmes do embaixador Yang Wanmin, esse padr?o de relacionamento estabelecido entre a China e o Brasil ao longo desses mais de 45 anos de rela??es diplomáticas deve prevalecer e a amizade entre os dois países devem prosseguir em seu curso normal.
Mesmo porque os interesses dos dois países, tanto a curto quanto a longo prazo, s?o muito convergentes, independentemente das aproxima??es estratégicas do atual governo em rela??o aos EUA. Além do mais, as bases dessas rela??es s?o muito sólidas e a China é um país muito maduro, que tem como um dos princípios das suas rela??es internacionais buscar sempre o ponto de convergência, independentemente do sistema de governo ou a preferência geopolítica de qualquer ator.
José Medeiros da Silva é doutor em Ciência Política, professor na Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang.